A recente movimentação na Câmara Municipal de São Paulo levanta preocupações sobre o futuro do patrimônio cultural da cidade. Um projeto aprovado em primeira votação propõe a flexibilização das regras estabelecidas pela Lei Cidade Limpa. Criada com o intuito de preservar a paisagem urbana, a legislação tem sido uma barreira importante contra a poluição visual. Agora, com a possibilidade de expansão de outdoors em regiões centrais, cresce o receio de que elementos históricos e culturais sejam encobertos por publicidade em larga escala, gerando prejuízos difíceis de reverter para a identidade paulistana.
A proposta de modificação das regras parece ignorar os avanços conquistados desde a implementação da lei, em 2007. Na época, São Paulo passou a ser referência mundial no combate à poluição visual, reduzindo drasticamente a presença de anúncios em locais públicos. Os benefícios foram percebidos de imediato: maior valorização de imóveis, requalificação de áreas degradadas e a redescoberta de fachadas históricas que estavam escondidas. A nova iniciativa, porém, ameaça esse equilíbrio ao abrir espaço para o retorno em massa da publicidade em grandes formatos.
Um dos principais riscos associados à medida é o apagamento involuntário da memória coletiva. A cidade de São Paulo abriga edifícios, monumentos e murais que contam sua história, e muitos deles são visualmente ofuscados quando cobertos por estruturas publicitárias. Com a possível aprovação do projeto em segunda votação, é provável que diversos pontos históricos sejam ocultados por outdoors, dificultando o acesso visual e simbólico da população ao seu próprio passado. Essa substituição de identidade urbana por propaganda comercial pode trazer impactos profundos à formação cultural das próximas gerações.
Outro fator preocupante é a falta de critérios objetivos no projeto para garantir a proteção de áreas sensíveis. A ausência de salvaguardas específicas para locais tombados ou de interesse histórico-cultural cria um vácuo legal que pode ser explorado indiscriminadamente. A cidade, nesse contexto, se torna vulnerável à descaracterização progressiva de suas regiões mais emblemáticas, com destaque para bairros como o centro histórico, Vila Mariana, e até mesmo regiões periféricas com expressões culturais relevantes. A publicidade, quando descontrolada, tende a substituir o significado do espaço público pelo consumo imediato.
A discussão em torno do projeto também levanta questionamentos sobre a representatividade das decisões legislativas. Parte da população vê a proposta como um retrocesso, sugerindo que interesses comerciais estão se sobrepondo ao bem-estar coletivo. A ausência de consultas públicas mais amplas e o ritmo acelerado das votações contribuem para a sensação de que as decisões estão sendo tomadas de forma desconectada das necessidades reais da cidade. A pressão popular, no entanto, começa a se organizar por meio de movimentos de proteção ao patrimônio urbano.
Especialistas em urbanismo e cultura alertam que a medida pode gerar um efeito dominó em outras capitais brasileiras. Se São Paulo, maior centro econômico do país, relaxar suas normas de preservação visual, outras cidades podem seguir o exemplo, reduzindo a importância do espaço público como bem coletivo. Essa tendência acarreta não só prejuízos estéticos, mas também funcionais, como a redução de visibilidade de sinalizações, impacto no trânsito e até o estímulo ao consumo compulsivo, moldando o comportamento urbano em favor de interesses econômicos de poucos.
Apesar de ainda estar em tramitação, o projeto já provoca uma série de debates entre arquitetos, historiadores, urbanistas e cidadãos comuns. Muitos argumentam que há maneiras mais equilibradas de permitir a publicidade sem comprometer o patrimônio cultural, como a limitação de altura, distância de áreas históricas e exigência de contrapartidas públicas. A cidade precisa avançar, mas sem esquecer suas raízes. É possível modernizar sem apagar, integrar sem esconder, e lucrar sem destruir a alma da cidade.
Com a segunda votação ainda pendente, os próximos dias serão decisivos para o futuro da paisagem urbana paulistana. A mobilização da sociedade civil será essencial para evitar um retrocesso que pode comprometer décadas de preservação. Manter viva a memória de São Paulo é mais do que uma escolha estética: é um compromisso com a história, com a cultura e com a dignidade do espaço que todos compartilham. O debate está lançado, e o tempo para agir é agora.
Autor : Artem Vasiliev